segunda-feira, 11 de maio de 2015

Guarda Compartilhada - Texto publicado na Revista Consulex n. 434 - 15 de fevereiro de 2015




GUARDA COMPARTILHADA
HÁ LUZES NO FINAL DO TÚNEL?
Cristian Fetter Mold

Nos últimos anos, temos assistido com atenção especial a uma mudança expressiva no tratamento dado ao instituto da “proteção da pessoa dos filhos”, Capítulo do Código Civil destinado às disposições sobre guarda e direito de visitas dos filhos após a dissolução do vínculo conjugal ou da união estável.
Tais dispositivos constavam já do Código de 1916 (arts. 325 et seq), tendo sido modernizados no Código de 2002 (arts. 1583 et seq) e vindo a sofrer recentes alterações, através das Leis nos 11.698/08 (institui a Guarda Compartilhada) e 12.398/11 (direito de visitas dos avós), e da recentíssima Lei nº 13.058/14, cujo Preâmbulo indica o objetivo de “estabelecer o significado da expressão guarda compartilhada e dispor sobre sua aplicação”.
Não há dúvidas de que o sistema anterior era insuficiente para atender às alterações ocorridas no âmbito da organização familiar brasileira, pois baseado na premissa de que somente deveria existir um guardião (de preferência a mãe, desde que não culpada pela separação), com a primazia das decisões mais importantes da vida dos filhos, cabendo ao não guardião – frequentemente com deveres alimentares – pouca participação na criação e educação, uma vez afastado pouco a pouco da rotina diária de seus filhos, por um sistema de visitas quase sempre modesto.
Curioso ressaltar que, mesmo sob a égide do Código de 1916, regra repetida no Código de 2002 (arts. 381 e 1.632, respectivamente), sempre pareceu-nos que a intenção do legislador era manter em equanimidade o exercício do poder familiar dos pais sobre os filhos, mesmo após a dissolução da relação.
Porém, a interpretação desses dispositivos sempre tendeu para uma oposição entre guarda e direito de visitas, tratando-se a guarda como “um direito subjetivo a ser atribuído a um dos genitores na separação, em contrapartida ao direito de visita deferido a quem não fosse outorgado esta posição de vantagem”, acabando por “desvirtuar o instituto da guarda, retirando-lhe a função primordial de salvaguardar o melhor interesse da criança ou do adolescente”1.
Como se sabe, o direito de visitas/convívio foi sendo ampliado ao longo dos tempos, passando-se à possibilidade de o chamado “não guardião” ter acesso aos filhos em dias de semana, às vezes com pernoite, ampliando-se o conceito de “final de semana” para que as visitas já começassem na saída da escola, às sextas-feiras, terminando na porta da escola, na segunda-feira subsequente, chegando-se algumas vezes até mesmo à divisão “salomônica” do convívio (50% x 50%), algo muitas vezes não recomendado, a depender da idade e maturidade das crianças ou adolescentes envolvidos.
Importantíssimo, aliás, o desenvolvimento destas “visitas ampliadas” – inclusive com a preocupação de envolver nos debates a figura dos avós e outros parentes, além de descortinar as discussões (ainda em andamento) sobre o papel dos padrastos e madrastas nesta dinâmica –, sendo hoje reconhecidas como importantes aliadas na prevenção dos laços de afeto entre pais e filhos, e também na prevenção da sempre temida alienação parental.
Todavia, remanescia entre os intérpretes do texto legal a incômoda ideia de que o guardião teria a primazia das decisões sobre os principais aspectos da vida dos filhos, como se o conceito de “guarda” fosse superior ao conceito de “poder familiar”.
Com isso, passou-se a defender que o modelo de guarda unilateral, como alternativa única nos casos de divórcio/dissolução de união estável, não atenderia ao melhor interesse das crianças. Era necessária a criação de um novo modelo que acabasse com a chamada “tirania do guardião”.
Com a edição da Lei nº 11.698/08, foi criado um novo modelo denominado “guarda compartilhada”, através do qual os pais, mesmo após a dissolução da união estável ou conjugal, continuavam a se responsabilizar conjuntamente pela criação e educação dos filhos.
Embora saudada como uma verdadeira “panaceia” por alguns, o legislador mandava aplicar o modelo “sempre que possível”, o que levou, em geral, doutrina e jurisprudência à interpretação de que o novo sistema funcionaria sempre que houvesse um mínimo de harmonia e respeito entre os integrantes do ex-casal.
Além disso, observou-se também a confusão terminológica entre “guarda compartilhada” e “guarda alternada”, bem como pleitos judiciais no sentido de aliar a adoção da guarda compartilhada com a dispensa do pagamento de pensão alimentícia aos filhos, dentre outros aspectos polêmicos, o que demonstrava a necessidade de aperfeiçoamento, não só do texto legal, como de sua interpretação.
Ademais, uma mudança de tamanho impacto não poderia entrar nos corações e mentes das famílias brasileiras de uma hora para outra, razão pela qual o modelo de guarda compartilhada não foi aplicado de pronto na maioria dos casos, como alguns esperavam.
De qualquer forma, ao menos em um primeiro momento, a mudança teve o inquestionável mérito de provocar um novo olhar sobre o assunto, trazendo à baila também o debate sobre os “papéis” do pai e da mãe no Brasil de hoje, além da necessária discussão sobre situações correlatas, tais como a necessidade, ou não, de se ter um “lar de referência” (primary residence), a viabilidade de se adotar sistemas de “guardas” e “visitas” diferenciadas para filhos em idades distintas, a possibilidade de um real compartilhamento das despesas com os filhos, qual o melhor sistema para pais que vivessem em cidades ou países diferentes, dentre outros, mostrando que havia, de fato, luzes no final deste túnel.
Com a edição da Lei nº 13.058/14, todavia, parece que tais luzes ficaram um pouco mais distantes. Isto porque, em primeiro lugar, apesar do seu Preâmbulo indicar que o novo texto legal tem por objeto “estabelecer o significado da expressão ‘guarda compartilhada’ e dispor sobre sua aplicação”, isto na verdade não acontece.
Basta um mero deitar de olhos sobre as principais mudanças da nova Lei para que verifiquemos que os objetivos aparentes do legislador foram bem distintos, trazendo muitas alterações também para o sistema de guarda unilateral, senão vejamos.
A nova lei:
·   estabelece que, na guarda compartilhada, o “tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai”, algo que na prática já vinha acontecendo com a ampliação do sistema de visitas;
·   revoga os incisos do art. 1.583, os quais traziam os critérios para o deferimento da guarda unilateral, na hipótese de sua aplicação. Revogação desnecessária em nossa opinião, uma vez que este modelo de guarda permanece em nosso ordenamento como uma alternativa;
·   determina que na “guarda compartilhada” a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que “melhor atender aos interesses dos filhos”, dispositivo em nosso entender escrito de forma errônea, uma vez que, em qualquer caso em que haja discussão sobre onde as crianças residirão, o juiz há de decidir segundo os melhores interesses das crianças, independentemente do sistema de guarda adotado;
·   introduz em nosso ordenamento a possibilidade de o não guardião pleitear “prestação de contas” em alimentos, instituto discutido há décadas e que, na nossa opinião, terá de ser aplicado com muita cautela e só em situações especiais2;
·   e, finalmente, o polêmico dispositivo que manda aplicar a guarda compartilhada, mesmo que haja desacordo entre os pais. Neste ponto, concordamos com o autor que entende que a imposição da guarda compartilhada no dissenso pode ferir uma série de princípios norteadores da proteção aos melhores interesses das crianças3.
Portanto, o novo documento legal traz mais dúvidas do que certezas, sendo certo que sua melhor interpretação pela doutrina e pelos tribunais se impõe tendo sempre como norte – e como luz no fim do túnel – o melhor interesse das crianças.
Buscando, enfim, amparo na doutrina canadense, sendo possível partirmos desta constatação para nossos estudos futuros, “não há presunções, nem de fato e nem de direito, em favor da guarda unilateral ou da guarda conjunta; cada caso deverá ser determinado em suas circunstâncias únicas”.
Destacam ainda os autores um julgamento da Suprema Corte da Nova Escócia, em que foram considerados como fatores importantes para determinar se os melhores interesses da criança seriam atendidos por um arranjo parental compartilhado, dentre outros: o interesse de cada genitor em compartilhar a tomada de decisões; a vontade de cada genitor em compartilhar as tarefas parentais; e a vontade dos genitores em buscar ajuda profissional quanto às questões da parentalidade4.
Tais aspectos são observados em todos os casos? Evidente que não. E não é uma sentença que modificará o jeito de ser de cada um. Esta pode até resolver o processo, mas não colocará um ponto final no conflito, e todos sabem quem sofrerá as consequências.
As luzes continuam no final do túnel. Sigamos em frente.

CRISTIAN FETTER MOLD é Advogado. Professor de Direito de Família e Sucessões do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e da Escola Superior da Advocacia (ESA OAB-DF). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e da Associação Advogados pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Gênero (ADLIB).

NOTAS
1 TEPEDINO, Gustavo. A disciplina da guarda e a autoridade parental na ordem civil-constitucional. Disponível em . Acesso em: 04.02.15.
2 Cf. CASSETARI, Christiano. Prestação de contas em alimentos. Posição favorável. Disponível em: . Acesso em: 04.02.15.
3 Cf. REZENDE, Fernando Augusto Chacha de. Guarda compartilhada impositiva no dissenso não pode ferir dignidade da pessoa humana. Disponível em: . Acesso em: 04.02.15.
4 PAYNE, Julien; PAYNE, Marilyn. Canadian Family Law. 5. ed. Toronto-Canadá: Irwin Law, 2013. (Livre tradução.)



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