sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O uso da religião como forma de fomentar a alienação parental

“- Sua mãe é uma pecadora!” “- Seu pai não tem deus no coração!”

O USO DA RELIGIÃO COMO FORMA DE FOMENTAR A ALIENAÇÃO PARENTAL
Cristian Fetter Mold


Texto publicado na Revista Consulex - nº 402 - de 15 de Outubro de 2013.

Introduzida em nosso ordenamento jurídico através da Lei nº 12.318/10, a alienação parental tornou-se um dos principais temas de estudos por parte dos juristas ligados ao Direito de Família, além de passar a integrar o leque de discussões presentes nas lides familiares, por vezes ocupando muito mais espaço nas petições das partes ou nas sentenças dos magistrados do que as disputas pela divisão do patrimônio ou pela fixação de pensões alimentícias.
Entretanto, não há ainda uma compreensão ampla do fenômeno na sociedade em geral, não sendo raro encontrarmos conceitos errôneos ou incompletos sobre o assunto. Em data recente, audiência pública ocorrida perante a Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal constatou, além da necessidade de difusão da matéria entre a sociedade, até mesmo a falta de preparo técnico dos profissionais das áreas de conhecimento (Direito, Psicologia, Periciais e outros) em relação à alienação parental.1
Que fique claro, portanto, que o presente artigo parte do princípio de que o texto legal, malgrado sua importância, apresenta características meramente exemplificativas, tanto no que tange ao conceito e agentes envolvidos no processo, quanto no que pertine às formas pelas quais a alienação parental se apresenta, sendo sempre possível aplicar os conceitos básicos contidos na Lei para hipóteses não imaginadas pelo legislador.
Na verdade, entendemos que andaria melhor o legislador ao dizer que a alienação parental pode ser praticada por qualquer membro da família paterna ou materna (natural, extensa ou substituta) contra qualquer outro membro da família paterna ou materna (natural, extensa ou substituta), sejam eles unidos à criança ou adolescente por laços consanguíneos, afins ou socioafetivos, podendo ainda o alienador utilizar-se de pessoa interposta, funcionários da casa, amigos, professores, companheiros(as), namorados(as), entre outros.
Ademais, resta-nos claro que a aplicação da Lei estende-se também aos casais do mesmo sexo e seus filhos, podendo ainda ambas as famílias adotar condutas alienantes recíprocas.

FORMAS DE ALIENAÇÃO PARENTAL E A RELIGIÃO COMO FOMENTADORA DA PRÁTICA
Notoriamente, o art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 12.318/10 elenca formas exemplificativas de alienação parental, tais como desqualificar o parente-alvo, dificultar o seu contato com a criança ou adolescente, apresentar falsas denúncias, dentre outros.
Aparentemente, a utilização de conceitos (ou preconceitos) religiosos como forma de denegrir a imagem do parente-alvo não tem chamado a atenção dos comentaristas pátrios. Porém, a possibilidade de seu uso dentro do “arsenal” de abusos cometidos pelo parente alienador vem sendo notada na doutrina estrangeira há algum tempo.
Um dos textos pioneiros a respeito da alienação parental publicado na Europa, de autoria de um pai belga afastado de seus filhos, François Podevyn, assim como os primeiros textos em muitos idiomas, inclusive no Brasil, procuravam listar uma série interminável de condutas que poderiam caracterizar a “síndrome” já então descrita por Richard Gardner e outros autores norte-americanos.
Na ocasião, dizia o autor belga que uma das formas de “sabotar” a relação entre os filhos e o outro genitor seria: “tomar decisões importantes a respeito dos filhos sem consultar o outro genitor (escolha de religião, escolha da escola etc.)”.2
Ora, pais e mães, ainda que não partilhem da mesma religião, possuem o direito de transmitir aos seus filhos seus valores e crenças, para que estes possam futuramente fazer suas próprias escolhas. Assim, obstaculizar este direito, forçando a criança a adotar uma religião, fazendo-a renegar os ensinamentos que poderiam advir do parente-alvo, há de ser prejudicial à sua formação psicológica, sendo então conduta abrangida pelo texto da Lei nº 12.318/10.
Frise-se que cada vez mais o ensino religioso no Brasil caminha para a modalidade “interconfessional”, respeitando a imensa diversidade religiosa existente no País, sendo atualmente vedadas quaisquer formas de proselitismo na educação religiosa.
Mas, logicamente, a história não dá saltos, e, infelizmente, assiste-se também a um avanço de algumas modalidades de manifestação religiosa baseadas em uma intolerância preocupante para com outras religiões, o que vem atingindo casais e provocando divórcios.
Por isso, nosso breve estudo precisa ir um pouco mais além. Entendemos que não só a “escolha” unilateral da religião é uma forma de alienação, como também que o uso abusivo de conceitos religiosos pode levar a criança ou adolescente a afastar-se do parente-alvo.
Um dos “sintomas” elencados pelo Professor Richard Gardner, o primeiro a descrever a suposta “Síndrome da Alienação Parental”, é a falta de ambivalência (lack of ambivalence) das crianças e adolescentes afetados, de modo que geralmente o alienador está sempre correto e o parente-alvo, ou parente alienado, está sempre errado.
A utilização abusiva de conceitos religiosos, de modo a submetê-los a crianças e adolescentes sem maturidade suficiente para compreendê-los em sua inteireza, podem ser assim um poderoso instrumento de aliança com os filhos e, conseqüentemente, de afastamento do parente alienado.
Tal conduta não escapa às análises da doutrina estrangeira. Para Joan B. Kelly e Janet R. Johnston: “Novos parceiros, particularmente aqueles percebidos como responsáveis ​​pelo rompimento do casamento, podem servir como um pára-raios para a raiva sobre o divórcio, e as crianças, em tais situações, muitas vezes se deparam com conflitos de lealdade gritantes e escolhas difíceis. Eles próprios podem sentir-se traídos pela descoberta do novo parceiro de um dos pais. Crenças e práticas religiosas fortemente arraigadas também podem contribuir para a alienação das crianças, sendo este parente condenado, tanto pela família, como pela Congregação, por procurar o divórcio por seu comportamento imoral e escolhas ímpias”.3
O norte-americano Richard Warshawk, em seu livro Divorce poison4, elenca uma série de casos trazidos ao seu consultório, envolvendo religião e alienação parental, e frases como “sua mãe não é somente uma mãe ruim, ela é uma pecadora”. Por quê? Usualmente por uma destas três razões: mais frequentemente porque ela dormiu com outro homem. Em alguns casos, somente porque ela deu início ao processo de divórcio. E, em outros casos, meramente porque ela não abraçou a nova crença religiosa do pai.
Segundo o autor, o discurso é o seguinte: essa mãe é má e digna de desprezo porque ela violou as leis de Deus, ela tem Satã em seu coração e será destruída no fim dos tempos, por sua falta de amor a Deus.
Facilmente a criança, em sua imaturidade, e na sua incapacidade psicológica de pensar em termos balanceados sobre uma pessoa, é encoberta por este manto de legitimidade e autoridade absoluta. A criança recebe a mensagem de que deve condenar esta mãe, não porque ela provocou ciúmes e raiva em seu pai, mas porque ela ofendeu a Deus. A criança é pressionada em direção à alienação parental como uma demonstração de sua fé.

BREVES CONCLUSÕES
Desta forma, embora praticamente não se mencione a hipótese na doutrina brasileira atual, entendemos que a escolha unilateral da religião ou, ainda, a utilização abusiva de conceitos religiosos como forma de prejudicar a visão que a criança possui de um de seus parentes de referência são formas de alienação parental, constituindo-se em interferência na formação psicológica das crianças e adolescentes, o que já foi observado na doutrina estrangeira e certamente há de surgir em breve nas Varas de Família brasileiras.
Reconhecida como uma forma de alienação parental, obviamente, os profissionais do Direito devem estar preparados para lidar com a situação, de forma rápida e efetiva, observando sempre o melhor interesse da criança e o respeito à sua formação religiosa, a qual pode – por que não? – abranger conceitos diversos e oriundos de doutrinas religiosas diferentes, não devendo haver qualquer tipo de hesitação em se punir o parente alienador que se recuse a cumprir com as determinações do Juízo.
E, jamais pretendendo esgotar o assunto, o qual merece considerações mais extensas, ficam as lições de Jennifer M. Paine: “Quando a religião entra no caso, o objetivo não é determinar qual parente é mais santo. […]. Ao invés disso, o objetivo é determinar qual parente irá reforçar e encorajar a formação religiosa da criança e o seu relacionamento com o outro parente”5, comando, diga-se de passagem, contido claramente no art. 7º da Lei nº 12.318/10.

CRISTIAN FETTER MOLD é Advogado em Brasília. Professor de Direito de Família e Sucessões do IESB. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e da Associação Advogados pelo Respeito à Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Gênero (ADLIB).

NOTAS
1   Disponível em: . Acesso em: 28.09.13.
3 In: The alienated child – A reformulation of Parental Alienation Syndrome. Disponível em: . Acesso em: 30.09.13. Tradução livre.
4 WARSHAK, Richard. Divorce poison – How to protect your family from bad-mouthing and brainwashing. Harper USA, 2010. Vide o capítulo With God On our side, passim.
5   Advogada em Detroit. Cf. How can religion sway your custody case. Disponível em: . Acesso em: 30.09.13. Tradução livre.



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